sexta-feira, 6 de março de 2009

Sedevacantismo refutado? (Parte I)

Diz um antigo adágio, provavelmente – não me lembro bem – tecido por um padre confessor: "Diante de evidências manifestas, mais justo e humilde é acusar que escusar".

Sabemos, no entanto, como é difícil dobrar a vontade humana diante das evidências de algo que não queremos aceitar. Por pura resistência em admitir o erro da posição anteriormente guardada, acaba-se dando falsas excusas para atos e fatos, consentindo que o orgulho prevaleça diante destes e daqueles, tornando com isso a verdade apenas um mero apêndice pouco importante. Escusamos o erro e o errático no lugar de acusarmos ambos. E, se dos erros tiram-se conclusões inevitavelmente perturbadoras, as escusas multiplicam-se ainda mais, no intuito de sanar a priori os efeitos de algo com que não queremos confrontar quiçá a mera possibilidade – quanto mais a evidência! – de ser verdadeiro.

Muitos dos tradicionalistas resistentes ao "Concílio" Vaticano II que não são sedevacantistas costumam dar inúmeras excusas para prolongar ad infinitum a sujeição nominal aos "papas" na igreja pró-CVII, mesmo considerando os ensinamentos e doutrinas propaladas pelo CVII e após este como errôneas, cismáticas ou inclusive heréticas, dando a seus defensores o epíteto de, ao menos, heréticos materiais. Sujeitam-se à pessoa que crêem ser papa, mas não se sujeitam, em todas as coisas devidas, nem ao seu magistério nem à sua jurisdição imediata, sob a alegação de que "resistem" em face de injustiças, pois tais papas seriam heréticos materiais professores de doutrinas errôneas e trabalhariam em favor da destruição da Igreja Católica, destruição que seria lícito resistir mesmo sob a gravíssima necessidade de sujeição ao romano pontífice (cf. Papa Bonifácio VIII, Bula "Unam Sanctam" – "Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice").

Quando perguntados sobre a pertinácia desses "papas", muitos deles argumentam que mesmo que fossem heréticos tais homens antes de serem papas, ainda sim eles poderiam ser "válida e licitamente sagrados" pontífices. E para defender tal afirmação espúria, dizem que na constituição "Vacantis Apostolicae Sedis", promulgada pelo Papa Pio XII, no §34, afirma-se nenhum cardeal excluído ficar da eleição passiva ou ativa do Sumo Pontífice por motivo de excomunhão, suspensão ou interdito; logo, deste mesmo modo, quaisquer homens que mesmo segundo tais aparentes impedimentos doutrinais (isto é, mesmo sendo heréticos) fossem sagrados papas, poderiam efetivamente estar no comando supremo da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana.

Se confrontados com a bula "Cum Ex Apostolatus", promulgada pelo Papa Paulo IV, a qual define ser a eleição de qualquer indivíduo herético/cismático instantaneamente nula e claramente inválida, dizem: "Ah! Tal bula já foi revogada pela Igreja Católica há muito tempo - . As disposições nela contidas são improcedentes para a aplicação moderna. Anacrônicas! Não é por meio delas que se pode afirmar serem inválidos tais papas hodiernos". E rejubilam-se em suas desleais escusas contra a indefectibilidade e contra a doutrina comum da Santa Madre Igreja provando, pelos seus atos e palavras, a sobejada audácia desses senhores.

Fazendo isso, estes crêem darem-se a si mesmos provas de que não são cismáticos e, numa adesão formal à figura individual que se assenta (materialmente) sobre a Sé de São Pedro, acreditam por isso também estarem concretamente fiéis a um verdadeiro papa. Diante de tal contraditório ensinamento e práxis, cria-se também a falsa idéia de que os sedevacantistas seriam, per se, defensores de uma doutrina errônea acerca do sumo pontífice, isso quando esta não é categorizada, coisa infelizmente não rara, como herética ou cismática. Isso porque desobedeceriam as deliberações da Igreja acerca da obrigatória sujeição ao romano pontífice – mesmo que puramente nominal, como a deles – pregando que os "papas" Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II e Bento XVI e que em Roma estão ou estiveram empossados na Sé de São Pedro eram antes da eleição hereges, e estes nunca poderiam ser eleitos validamente.

Mas a verdade é bem outra. Pretendemos mostrar aqui que essas proposições de pouco ou nada valem diante daquilo que a Santa Madre Igreja ensinou sobre a questão da eleição de um herege como papa.

Verifiquemos primeiramente os erros da tese de que mesmo um candidato excomungado poderia ser eleito papa, baseada na "Vacantis Apostolicae Sedis", de Pio XII. A argumentação de nossos oponentes pode ser reduzida a um silogismo simples, que diz:

Premissa Maior:
"Nenhum tipo de impedimento incorrido por um cardeal (excomunhão, suspensão ou interdito) é obstáculo para o mesmo eleger um papa ou ser eleito papa";

Premissa Menor:
Ora, "X é um cardeal que está sob um impedimento de excomunhão, por ser herético";

Conclusão:
Logo, "X não pode ser impedido de ser eleito papa ou de eleger um papa".

O erro desse silogismo está na consideração universal da premissa maior, deduzida erroneamente duma leitura apressada da "Vacantis Apostolicae Sedis".

Segundo este documento promulgado por papa Pio XII, não são quaisquer impedimentos que não são obstáculo para um cardeal eleger ou ser eleito papa, mas tão somente os impedimentos eclesiásticos. O parágrafo 34 do decreto referido afirma: "…aut alius ecclesiastici impedimenti praetextu".

Isso porque há impedimentos e excomunhões (anátemas) que são provenientes não apenas de direito eclesiástico, mas também de Direito Divino (cf. tópico "Impedimentos Canônicos" - "Canonical Impediments", da Catholic Encyclopedia-1917, que diz: "The impediment, in other words, the restriction or suppression of the juridical capacity of the agent, may arise from natural laws from Divine law, or from human law, ecclesiastical or civil". – "O impedimento, noutras palavras, a restrição ou supressão da capacidade jurídica do agente, pode advir de leis naturais, da lei Divina ou da lei humana, [seja] eclesiástica ou civil") – e a Igreja sobre estes últimos impedimentos não possui poder algum, dado que ela mesma é submissa ao Senhor e à sua Lei, e não o contrário.

Sabendo também que a Igreja nos ensina que nem mesmo o papa – o possuidor do maior cargo dentro da Santa Madre Igreja Católica – é isento de se submeter em tudo ao Direito Divino (cf. Papa Pio IX, Denzinger-Hünermann 3114), e sabendo que por Direito Divino os heréticos são privados da possibilidade de receberem quaisquer cargos na Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, (cf. tópico "Impedimentos Canônicos" - "Canonical Impediments", da Catholic Encyclopedia-1917, que diz: "A heretic, (...) is incapable of acquiring spiritual jurisdiction" – "Um herético (...) é incapaz de receber jurisdição espiritual". Vide também M.Coronata, no "Institutiones Juris Canonici", 1:312.: "What is required by divine law for this appointment.… For validity it is also required that the person appointed be a member of the Church. Heretics and apostates - at least public ones - are therefore excluded." – "O que é requerido pela lei divina para esta designação… Para a validade é necessário que a pessoa designada seja um membro da Igreja. Heréticos e apóstatas – pelo menos aqueles públicos – são conseqüentemente excluídos". Vide ainda P. Maroto, "Institutiones Iuris Canonici", 2:784 – “Heretics and schismatics are barred from the Supreme Pontificate by the divine law itself" – "Heréticos e cismáticos são barrados do Sumo Pontificado pela lei Divina mesma") ainda mais propriamente o sumo pontificado, a patência dessa falácia pseudotradicionalista mostra-se em toda sua desprezível falsidade.

Isso que afirmamos não é arbitrário: está manifesto de modo cristalino no Direito da Igreja. No cânone 2314 do "Código de Direito Canônico" (1917), §1 - "Todos os apóstatas da fé cristã e todos e cada um dos hereges e cismáticos: 1º Incorrem ipso facto em excomunhão".

Também no Sagrado Magistério da Igreja – coativo a todas as consciências dos católicos em matéria de Magistério Ordinário Universal – está explícito tal ensinamento. Na "Mystici Corporis" §22, Pio XII ensina-nos que os "Nem todos os pecados, embora graves, são de sua natureza tais que separem o homem do corpo da Igreja como fazem os cismas, a heresia e a apostasia". E na "Satis Cognitum" de Leão XIII, §37, está escrito claramente: "É absurdo que presida na Igreja quem está fora dela". Nas Sagradas Escrituras também encontramos passagens referentes a essa verdade de Direito Divino (Tit 3,10-11; Gal 1,8-9; 2 Cor 6,14-18; Jo 3,18; 2 Jo 10-11), bem como nos decretos do 3º e 5º Concílios Ecumênicos da Igreja Católica (Éfeso e II de Constantinopla).

É evidente isso também quando analisamos a estrutura da Santa Madre Igreja por meio de uma perspectiva sociológica, usando a força da sã razão humana.

A Igreja Católica é uma sociedade de fé, de instituição Divina. Para se fazer parte dela, deve-se crer e agir conforme aquilo que é necessário e essencial à pertença nela – só que aquilo que é necessário crer e fazer para pertencer à Igreja não está totalmente sob o poder dela: há determinadas normas que sim (as excomunhões de direito eclesiástico, que a Igreja mesma estabeleceu), e outras que não (as excomunhões de Direito Divino, diante das quais a Igreja apenas se submete). Sabendo que um herético é aquele indivíduo que nega ao menos uma das proposições que devem ser cridas ou realizadas pelos integrantes dessa sociedade, evidentemente a partir do momento em que um dos membros da Igreja se torna um herege, ele se exclui do grupo social desta.

Excluindo-se de um grupo social uma determinada pessoa, qualquer cargo desse mesmo grupo que por aquela pessoa for exercido, só poderá de fato ser exercido por essa pessoa e ao mesmo tempo não ser contra a natureza do grupo em uma circunstância: se o próprio grupo social – naquilo que lhe é competente – permitir que tal pessoa exerça o determinado cargo. Ora, como a Igreja não possui poder para modificar aquilo que Deus mesmo estabeleceu (isto é, as excomunhões de Direito Divino), temos então que a Igreja só poderia permitir que uma pessoa excomungada exercesse um cargo nela quando a excomunhão fosse proveniente de uma lei meramente eclesiástica. Dado que a exclusão do herético na Igreja é uma exclusão que por Direito Divino foi estabelecida, a Igreja nada pode fazer para tornar aquele excomungado um encarregado de qualquer coisa dentro dela – ela não possui jurisdição nem poder para tanto. Tal está exclusivamente em Deus.

O que os pseudotradicionalistas terminam por defender com isso é que a Igreja seria capaz de fazer algo que nem mesmo Deus teria permitido ela fazer. Dão à Igreja um poder que a ela não pertence. Pervertem a compreensão do poder da Igreja, tal como o Chanceler Bismarck perverteu, achando-a com jurisdição mesmo sobre as coisas divinamente instituídas. É como se dissessem: "A Igreja tem o poder de alterar o conteúdo dos Evangelhos, a revelação pública de Nosso Senhor Jesus Cristo ou os Dez Mandamentos".

Absurdos, tanto os provenientes do exemplo ilustrativo quanto os acima realmente enunciados, não podem ser aceitos por católicos sérios. Tamanha incompreensão sobre a verdadeira natureza da ação da Igreja ao suspender os impedimentos durante um conclave só confunde as almas católicas ao invés de levá-las a compreender corretamente a situação atual dos "papas" da igreja conciliar.

Confrontados com essa exposição dessa estultice, certamente já se apoiariam com menos ardor num exemplo histórico que antes pretenderam que fosse a imagem concreta da doutrina defendida. Mas supondo ainda muitos não estarem convencidos até que se prove igualmente essas imagens não procederem na justificação de suas objeções, convém atinarmo-nos para tal problema.

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