segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Furacões na Cidade... de Deus - parte III

Continuando o capítulo 11 do livro "Os Jesuítas", do sacerdote exorcista Malachi Martin:

"Em outro nível, enquanto isso, acontecia em todos os seminários, colégios e universidades católicas uma depuração mais sutil mas ainda evidente. Homens mais velhos, de idéias tradicionais, foram aposentados prematuramente ou simplesmente se afastaram desgostosos. Eles só eram substituídos por partidários fervorosos da "Renovação" (a palavra era sempre escrita com a inicial maiúscula naquela primeira fase). Os seminaristas eram expulsos se achassem a novidade abominável.

Para acentuar as cores de crepúsculo daquela cena varrida pela tempestade, veio uma segunda tempestade, a onda de euforia. Surgiu, entre os que restaram, a magnífica, embora nem sempre convincente, idéia de que o futuro do catolicismo, tão abruptamente reduzido em sua prática e no número de adeptos, era agora um tanto mais brilhante do que nunca. O que parecia um monte de destroços era, na realidade, uma imensa renovação pentecostal em marcha; a verdadeira Igreja de Cristo estava para surgir em toda a sua beleza e verdade.

Aquelas esperanças - todas as esperanças - se concentravam, agora, na comunidade, "O Povo de Deus" estava, agora, distinto e separado da antiga e inflexível hierarquia do papa, bispos, padres e freiras na rígida solidificação da disciplina romana. Mais do que isso, dizia-se agora que aquele Povo de Deus - todo ele, bem como cada pequeno grupo de fiéis - era a verdadeira Igreja, a verdadeira fonte daquilo em que se deve acreditar. Em questões de fé, moral, dogma e prática religiosa, Roma, do atual estado da Geórgia, tinha a mesma autoridade que a Roma dos papas. A autoridade central estava desaparecendo como verdade católica prática.

Se alguém olhasse à sua volta, na primeira fase da tempestade, para se orientar, nenhuma pessoa isolada e nenhum grupo isolado pareciam responsáveis pelo surgimento daquela eufórica convicção. Mas ela avançava como um incêndio descontrolado pelas igrejas, afrouxando os laços entre os leigos e o clero, entre freiras e superiores eclesiásticos, entre padres e bispos, entre bispos e papas.

Conseqüência imediata foi a insistente exigência de que a democratização substituísse a autoridade central e pusesse uma nova e muito necessária ordem por toda a Igreja. Os padres se organizaram em ligas, associações, senados e sindicatos, em bases nacionais e regionais. As freiras fizeram o mesmo. Os leigos, homens e mulheres em separado, também. Todos emitiam declarações bem delineadas de seus direitos e exigências. Todos exigiam que métodos democráticos fossem usados não apenas no governo da Igreja Romana, mas até mesmo para "decidir" no que se deveria acreditar. Toda uma gama de carreiras inteiramente novas abriu-se para clérigos que não tinham interesse em ouvir confissões, batizar bebês, procurar pecadores e rezar missa.

Com uma velocidade surpreendente, a cena contemporânea assumiu um aspecto ridículo, cômico, que parecia pedir uma exploração em filmes do tipo "pastelão" e por cômicos de casas noturnas. Padres com rosários simbolizando paz e amor faziam pressão sobre os bispos, dedilhando violões e cantando "Sonhar o Sonho Impossível". Freiras usando maquilagem, jóias e roupas da moda sorviam coquetéis em suas "convenções" anuais em salas de estar de hotéis. Bispos estampavam em suas cartas pastorais a foice e o martelo em alto relevo, em vez dos símbolos normais da Cruz e da Igreja. Teólogos davam saltos mortais metafóricos sobre a cúpula da Basílica de São Pedro, em suas tentativas de saltarem para longe de toda e qualquer regra romana de moralidade e fé. Um arcebispo americano subiu serenamente ao púlpito para pedir à sua congregação que parabenizasse e rezasse por seu bispo auxiliar que no dia seguinte ia deixar o episcopado para se casar. Um bispo americano, que mais tarde se tornou cardeal, organizava "comitês de bolinhos" em todas as suas paróquias para serem usados como pão da comunhão do novo rito que substitui a Missa Romana. Um arcebispo mexicano começava regularmente seus sermões dominicais com um punho cerrado erguido ema saudação e com o grito desafiador da Internacional Comunista, "Soy marxista", nos lábios.

O público em geral não deixou de perceber a atmosfera circense. Pela primeira vez na história da indústria cinematográfica e de televisão americana, o padre católico, a freira católica, o seminarista católico, os rituais católicos tornaram-se presa fácil para risadas gratuitas e dramas horripilantes. Como o pastor anglicano na Inglaterra de Noël Coward e os rebe judeu na Europa das décadas de 1920 e 1930, aqueles personagens católicos romanos, antes intocáveis - freira, padre, bispo, papa, seminarista - entraram para o cartaz mundial de matéria de entretenimento.

E a euforia continuava. De algum modo, tudo aquilo, também, era interpretado como parte da promessa de um futuro dourado para o catolicismo.

A substância, tanto da euforia como da confusão nunca foi retratada mais literalmente do que por dois artistas romanos, Ettore de Concillis - sem dúvida um nome com um toque de ironia histórica - e Rosso Falciano. Nos últimos dias do Concílio Vaticano II, contratados para decorar as paredes de uma nova igreja em Roma dedicada a São Francisco de Assis, Conciliis e Falciano pintaram uma rodopiante montagem de rostos de perfil. Foi como se a brafunda disparatada de retratos tivesse sido colocada naqueles mesmos ventos fortes, àquela altura adquirindo rapidamente a plena força de um furacão. O papa João XXIII, o ditador comunista Fidel Castro, o ateísta professo Bertrand Russell, o líder do Partido Comunista Italiano Palmiro Togliatti, a atriz excomungada Sophia Loren, o presidente Alexei Kosygin do Conselho de Ministros soviético, o prefeito esquerdista Giorgio La Pira, de Florença, o ditador comunista Mao Tsé-tung da China, e sabe-se lá por que razão, Jaqueline Bouvier Kennedy.

Nem Conciliis nem Falciano eram comunistas. Mas estavam convencidos de que, com o Vaticano II, tudo estava mudado. Ninguém estava errado: todos estavam certos. Tal como a Igreja, São Francisco, o poverello de Assis, podia abraçar a todos. Porque agora o impossível aconteceu. A Igreja Católica tornou-se humana; e, portanto, nada que fosse humano podia ser visto como alheio a ela. Renovação era o caminho, a verdade, e a vida do catolicismo romano. E sua mensagem era levada nas asas de seu próprio delírio: se a Igreja hierárquica pudesse mudar, pudesse adaptar à humanidade da Renovação, a Era de Ouro da Cristandade iria nascer.

Realidade, disse certa vez Jean-Paul Sartre, é um balde de água fria. Ela o deixa sem respiração, incapaz de falar. Foram tão repentinos e tão esmagadores aqueles dois furações, que expressões articuladas de surpresa ou choque pareciam impossíveis para a grande maioria de homens e mulhres - tanto testemunhas como participantes. A mudança foi uma mudança de verdade. A euforia era euforia de verdade. Ninguém discutia a autenticidade de nenhuma das duas. Sua realidade ultrapassava qualquer ficção ou pretensão, em termos de estranheza, incongruência ou espírito inventivo. Mas embora houvessem indivíduos e grupos de pessoas aqui e ali que gritassem em equivalente a "Esperem aí! O que é que está acontecendo? Por que estamos mudando tudo?", era como se ninguém pudesse ouvi-los por causa do barulho da tempestado dupla que assolava o catolicismo."

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